segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O que é “ser espiritual”? » entrevista com Robert Broughton

Robert Broughton
» por Juliana Luna
A experiência de Robert Broughton o mostrou que muitos que reivindicam-se “espirituais” estão numa tentativa intelectual de entender intelectualmente algumas coisas que não podem ser entendidas através do intelecto e da mente, e que técnicas de autoconhecimento que deveriam levar a uma superação do ego podem facilmente ser reapropriadas pela mente e transformar-se no que ele chama de “ego espiritual”, onde as pessoas estão apenas vestindo uma nova máscara “espiritual”, ao invés de entrar em contato com o que elas realmente têm dentro de si.

Durante 13 anos, o australiano Robert Broughton foi um clássico “buscador espiritual”, vivendo como um monge budista no sudeste asiático, tentando intensamente encontrar iluminação, até que um dia deu-se conta de que fundamentalmente permanecia o mesmo, apesar de todos os seus esforços. Essa conclusão produziu um colapso nervoso que o levou a um hospital psquiátrico por dois meses. Posteriormente, alguém o sugeriu abandonar qualquer busca e simplesmente viver uma vida normal. Seguindo esse conselho, seis meses depois sua mente espontaneamente parou, e o que ele procurou por 13 anos naturalmente aconteceu. Há três anos, numa viagem em Tiruvanmalai, no sul da Índia (centro de peregrinação em torno do santo Ramana Maharshi), Robert encontrou jovens cheios de “idéias espirituais” que viajavam pela Índia “buscando espiritualidade”, assim como ele havia estado 30 anos atrás. Usando do conhecimento sobre como as emoções reprimidas inibem o funcionamento natural do corpo humano, Robert encorajou essas pessoas a espontaneamente viver o aqui e agora, guiando-as a uma livre expressão espontânea de sua natureza real. Hoje, aos 60 anos, ele continua guiando grupos na Dinamarca, Alemanha, Israel, Estados Unidos e Brasil. Toda a renda obtida com seus ensinamentos é utilizada para a construção de banheiros ecológicos em uma comunidade em Tiruvanmalai.


Entrevistadora – O que é ser espiritual?


Robert – O que é ser espiritual… bem, não existe essa coisa de “ser espiritual”, porque espiritual vem da palavra espí­rito. Em relação a uma coisa como espí­rito, quando tentamos entender isso, esse entendimento vem da mente. Então ser espiritual quer dizer ser uma coisa, algo diferente do que você já é. A questão não é “ser espiritual”, mas simplesmente ser, e isso não é nem mesmo uma questão. E se você perguntar o que quer dizer “ser”? Ser significa ausência de perguntas.


Entrevistadora – Qual é seu sentimento em relação às pessoas que tentam ser espirituais?


Robert – As pessoas que estão tentado “ser espirituais” estão tentando ser algo diferente do que elas já são, o que é uma atividade da mente e do ego.


Entrevistadora – Você enquadraria nessa situação os ocidentais que praticam técnicas espirituais orientais?


Robert – A maioria. Faz parte da jornada deles tentar ser algo “diferente” de todas as outras pessoas, algo “melhor”, superior e especial, mais do que todas as outras pessoas. É sobre tentar obter algo. Não existe nada a ser obtido. O que quer dizer “ser espiritual”? Eu não sei, isso não tem nenhum significado para mim.


Entrevistadora – O que tem significado para você?


Robert – Estar completamente presente em cada momento. Ver quando não estamos presentes, vê-lo e trazer a sua atenção de volta para o momento presente, caso a sua atenção esteja nos pensamentos, no futuro ou no passado. Porque agora, esse momento, é tudo o que existe. E, se não estamos completamente neste momento presente, onde estamos? Estamos frequentemente na mente, em algum lugar, no passado ou no futuro…. É so isso, é muito simples.


Entrevistadora – É tão simples que a mente não consegue ver…


Robert – É tão simples… É um paradoxo. Existem muitos paradoxos no universo, um deles é que o universo está contraindo-se e expandindo-se ao mesmo tempo, está ficando grande e pequeno ao mesmo tempo. E o paradoxo sobre viver no momento presente, no aqui e agora, é que é muito simples e muito complicado ao mesmo tempo. É simples se você toma a sua atenção fora dos pensamentos e a traz para o momento presente, mas se você tentar buscar o momento presente no seus pensamentos, é muito, muito difí­cil. Mas, claro, como temos tantos pensamentos condicionados, quando trazemos nossa atenção no momento presente, quando não estamos conscientes, a atenção volta ao pensamento condicionado outra vez. É um hábito fazer isso, entãonecessitamos repetidamente estar conscientes de onde a nossa atenção está, estar olhando o tempo todo e continuar trazendo-a de volta para o agora, para o momento presente, até isso tornar-se um hábito, até que se torne natural, então não existe você, você fazendo, acontece espontaneamente, porque o poder da sua consciência torna-se maior do que o seu pensamento condicionado. Até que isso aconteça, o pensamento condicionado continuará trazendo a atenção de volta aos pensamentos, continuará voltando lá, até a sua consciência ver e trazer você de volta ao momento presente. Mas até que a sua consciência torne-se maior do que seu fluxo condicionado de pensamentos, estará às vezes no momento presente, às vezes de volta na mente condicionada, e gradualmente, à medida que a consciência torna-se mais forte, a tendência para a sua atenção em ir nos pensamentos condicionados será menor e menor.


Entrevistadora – Qual e a diferença entre atenção e consciência?


Robert – Atenção é um ponto de foco. Consciência é saber algo, ver… Quando você está consciente de algo, o que isso quer dizer?


Entrevistadora – Quer dizer que você sabe?


Robert – É ver, é ver, mas não através de pensamentos. Agora eu estou olhando este copo na mesa. Eu posso pensar sobre o copo ou apenas olhar o copo. E esse olhar, sem pensar, é consciência.


Entrevistadora – E a “atenção” envolve a mente?


Robert – Sim, atenção é um ponto de foco.


Entrevistadora – Concentação…


Robert – Não, atenção não é concentração. Atenção é onde os seus olhos estão olhando em um momento particular.


Entrevistadora – Então atenção não é o mesmo que consciência?


Robert – Atenção não é concentração. Eu posso olhar aquele copo e pensar sobre ele. Então a minha atenção esta no copo, mas ainda existem pensamentos sobre o copo. Eu posso estar com a minha atenção no copo sem pensar sobre ele, isso é consciência. Eu também posso estar consciente de que eu estou pensando sobre o copo. Consciência é aquilo que conhece (vê) os pensamentos. Como você sabe que você está pensando? Você está consciente deles. Quando você não está consciente dos pensamentos, você está apenas pensando.


Entrevistadora – Estar consciente é ver e saber…


Entrevistadora – Você pode estar consciente quando você está inconsciente?


Robert – Quando você dorme, você está inconsciente, mas quando você acorda você sabe que sonhou. Então o que é aquilo que lembra do sonho?


Entrevistadora – A consciência. Mas não existe consciência quando você está sonhando…


Robert – Estamos falando de diferentes estados de consciência agora. Podemos dizer que existe consciência quando você está acordado, consciência quando você está dormindo, consciência quando você está sonhando…


Mas essa discussão que estamos tendo agora é completamente mental. É uma tentativa intelectual de entender intelectualmente algumas coisas que não podem ser entendidas através do intelecto e pela mente.


Entrevistadora – Devem ser sentidas?


Robert – Devem ser vistas, vistas e sentidas…


Entrevistadora – Não discutidas…


Robert – Não discutidas demasiadamente. Faladas apenas um pouco, de maneira que o falar sobre traga você em contato com a emoção, de maneira que não ficamos dando voltas e voltas e voltas… num cí­rculo intelectual.


Entrevistadora – Por que você não utiliza a palavra meditação?


Robert – Porque meditação tornou-se uma palavra mal utilizada, banalizada. Meditação é algo que envolve um fazer, e um fazedor sempre envolve a mente… Quando você repete um mantra de novo, de novo e de novo outra vez, existe um tentar fazer algo, um tentar obter algo, e isso foi o que meditação tornou-se. As pessoas fazem meditação para serem mais espirituais, para tornarem-se uma pessoa melhor, para elevar a consciência, serem diferentes e melhores do que os outros. Tornou-se uma ferramenta para construir o ego, e aumentar a capacidade da mente, do processo de pensamento, pode ser usado para isso. Caso os seus pensamentos não estejam claros, se a sua memória não está muito boa, você pode usar a meditação para melhorar a sua capacidade e poder de pensamento, de maneira que você pode funcionar melhor na sua vida diária: se você é um matemático, você pode obter equações melhores, se você é um homem de negócios, pode fazer mais dinheiro, mas saber quem você realmente é envolve uma dimensão da consciência além dos pensamentos e das limitações da personalidade.


Eu nunca li sobre ninguém que despertou ou realmente viu, que viu através da mente, através de meditação. Eu nunca vi um caso de alguém que descobriu quem realmente era através de meditação. Por exemplo, Eckhart Toller usa a palavra meditação nos seus livros, mas o seu despertar não aconteceu através de meditação. Aconteceu através de um colapso espontâneo da identificação com a mente através de intenso sofrimento, e o mesmo aconteceu com Ramana Maharshi.


É necessário para a maioria das pessoas atravessar uma jornada de práticas espirituais, como eu fiz por 13 anos. Depois que o meu despertar começou a acontecer, bem quando realmente começou a acontecer, e eu estava num estado que eu chamaria “satori“, um estado de total paz e total unidade, duas horas depois alguns pensamentos vieram, e o primeiro pensamento que veio foi: “o que foi isso?”. E o segundo pensamento foi: “como posso experimentar isso outra vez?”. Então eu tive que rir muito… Existiu algo que viu que esses pensamentos eram inúteis. Isso era a mente tentando obter algo que já havia passado e a mente estava questionando: “o que é isso”? E a mente nunca vai obter resposta… E aí­ a mente diz: “como posso obter isso outra vez?”. Essa mente, esse ego, nunca vai obtê-lo. Ele diz “nunca vou obter”, e diz “como eu posso obter isso outra vez?” porque quer utilizá-lo para ele mesmo. E às vezes obtém sucesso em obtê-lo, e aí­ algo chamado “ego espiritual” começa a formar-se.


Entrevistadora – O que é “ego espiritual”?


Robert – Ego espiritual é uma parte do ego, talvez a parte mais perigosa do ego, porque acredita que conhece o que é verdade, e acredita que conhece a realidade diretamente. Normalmente o ego está jogando todo tipo de pequenos truques, recusando a realidade, mas essa parte do ego pensa que conhece a realidade, mas não apenas isso: sai falando para as outras pessoas que conhece a realidade, e isso acontece porque obteve alguma informação que soa bem (de um livro, talvez?). Quando lemos algo num livro que nos excita, a mente obtém grande prazer e excitamento nisso, especialmente se estamos lendo algo sobre livrar-se do sofrimento. E esse excitamento que é criado pela mente não é liberdade do sofrimento, é apenas um excitamento criado sobre a possibilidade de liberação do sofrimento, apenas isso. Então, o que tendemos a fazer é sair por aí­ falando de uma maneira muito excitada para as pessoas: “Oh, eu consegui uma informação fantástica sobre liberação do sofrimento!”.


E torna-se algo muito interessante de “falar sobre”, especialmente num cocktail, se você quer um bom assunto para conversar…


Entrevistadora – Para seduzir os outros…


Robert – Sim, muitos usam sua excitação sobre esse novo conhecimento descoberto para seduzir mulheres… Eu sei disso porque fiz isso no passado… Eu estive lá, eu mesmo, e eu sei sobre isso…


Agora, a outra experiência que eu mencionei, sobre satoriSatori é quando as portas do seu despertar abrem-se brevemente por um curto perí­odo de tempo, quando a mente se torna, por qualquer motivo, muito calma. Às vezes sabemos porque isso acontece, e às vezes não sabemos por que isso acontece, apenas vem, e de repente estamos num estado de graça, completa stillness(placidez, vazio, ausência de pensamentos), sem pensamento. Sentimos-nos muito presentes, um estado completamente livre de problemas, normalmente extático também. Satori desaparecerá depois de um determinado perí­odo de tempo, depois de algumas horas, dias ou meses, e aí­ somos deixados apenas com a memória. Daí­ começamos a falar para as pessoas sobre o que aconteceu, esse lugar maravilhoso que estávamos antes: esse é o ego espiritual.


A mente toma a experiência espiritual (satori) e a transforma em uma “história legal”, mas não tem nada a ver com o que está acontecendo no momento presente. É outra forma de viver no passado. Essa palavra “iluminação” é uma palavra que eu joguei fora muitos anos atrás, porque essa palavra pode excitar muito a mente. Porque a mente pensa que em algum lugar do futuro algo maravilhoso vai acontecer. Iluminação é sobre viver no futuro, não aqui e agora. Eu prefiro usar a palavra despertando, nem mesmo despertar, mas despertando… que é uma coisa que está acontecendo aqui e agora.


Essa é uma parte do ego espiritual, que também gosta de controlar as pessoas e vai formar religiões organizadas, e gosta de falar para as pessoas o que elas tem que fazer. Vai falar para as pessoas que elas não sabem de nada e que você sabe. E se o seu ego espiritual é esperto o suficiente, você pode convencer muitas pessoas que sabe algo que na verdade não sabe. Até que o ego espiritual deles engrandece e eles dizem “tchau, eu vou começar meu próprio grupo”…


Entrevistadora – Você acha que a maioria das chamadas “práticas espirituais” orientais populares no Ocidente são formas de ego espiritual?


Robert – A maioria é sim… Não completamente ego espiritual, pois alguns tem e outros não. Mas não existe nada de errado no que eles estão fazendo. Eu mesmo tive que passar 13 anos como um cachorro mordendo o própria rabo, dando voltas, voltas e voltas… Mas era melhor do que a vida que eu tinha antes de começar a fazer isso, que era uma vida de rock and roll com drogas, madrugadas sem dormir, muito mais ilusão, relações disfuncionais com pessoas, sem entender nada sobre a vida… Então, esses 13 anos de meditação me prepararam para algo, me preparam para abandoná-la, me levou a um certo ponto e eu tive de abandoná-la.


Entrevistadora – Mas na Índia eles dizem que no começo é necessário práticas duras e depois deixá-las.


Robert – Parece ser o que acontece… É o que acontece porque todas as práticas e técnicas estão disponí­veis no mundo, e quando temos muito sofrimento, podemos agarrar-nos a algo assim como um salva-vidas, por um perí­odo de tempo. Quando começamos a ficar mais equilibrados e com menos sofrimento, não precisamos mais desse salva-vidas, e aí­ o desafio é deixá-las…


Entrevistadora – Pode tornar-se como uma droga?


Robert – Sim, pode tornar-se como uma droga. E o que um pode fazer na vida? Simplesmente enfrentar o que está vindo para você e atravessá-lo ou sair correndo e evitar as coisas. Mas normalmente a mente nos atraiçoa dando-nos muitos bons motivos porque devemos evitar a vida em si, ao invés de enfrentá-la. Vida é o que está acontecendo o tempo todo, dentro de nós e ao redor de nós, e é doloroso às vezes. Não gostamos dessa dor e queremos resistir a ela, sem dar-nos conta de que essa dor é o nosso melhor professor. Se apenas nos abrimos para ela e enfrentamo-la, ao invés de evitá-la o tempo todo…


Entrevistadora – E a razão de tudo isso é apenas porque a mente quer controlar a realidade?


Robert – Porque a mente quer controlar a realidade…


Entrevistadora – A mente não entende que é menor do que a vida…


Robert – A mente não quer entender isso… A mente não quer aceitar que vai morrer um dia. Está sempre tentando fazer algo, obter algo, sente que tem que controlar a vida, porque se não controlar a vida vai morrer… E isso é exatamente o que necessita acontecer, de modo que nós, ao invés de controlarmos a realidade, nos tornemos parte dela e permitamos que ela seja vivida através de nós. Você sente o fluxo da vida através de si e pode relaxar e deixar rolar dentro desse fluxo. Você não tem que fazer, apenas permitir que aconteça… Isso foi o que eu descobri.


Entrevistadora – E sobre o que você chama “máscara espiritual”?


Robert – Máscara espiritual é como o ego espiritual se mostra no corpo…


Entrevistadora – A expressão facial?


Robert – A expressão facial, o discurso e os movimentos do corpo…


Entrevistadora – A aparência de estar calmo?


Robert – Não é uma calma “falsa”, mas uma calma “superficial”, e não uma calma profunda e genuí­na…


Entrevistadora – É falsa?


Robert – Eu não usaria a palavra falsa para descrevê-la… Esse copo está cheio pela metade, o que não quer dizer que a bebida seja ruim… Não é um copo cheio de bebida… Não é um copo falso, é que a calma é apenas superficial, não é uma calma profunda, mas não é uma calma falsa. Não é que não exista calma de jeito nenhum, em algumas pessoas. Algumas pessoas não tem calma de jeito nenhum, estão tremendo e falando rápido, pulando, não conseguem sentar direito, pois as pernas estão tremendo: isso é falta de calma total.


Entrevistadora – Agora que eu aprendo a observar os ocidentais que constróem identidades em torno de serem “pessoas espirituais” mais atentamente, incluindo eu mesma; as pessoas aprendem a controlar suas emoções, a serem bons atores…


Robert – É por isso que, quando eu dou palestras em algumas escolas e centros e eu pergunto as pessoas como elas se sentem, elas dizem: “eu estou calma”…


Entrevistadora – Eles pensam que estão calmos?


Robert – Eles estavam praticando alguma técnica de relaxamento e obtém um pouco de calma num ní­vel superficial…


Entrevistadora – As pessoas aprendem a não estar completamente fora de controle?


Robert – Eles aprendem um pouco de calma, e não existe nada de errado com isso. Chegará um certo ponto que eles se darão conta de que necessitam aprender muito mais. E que as técnicas e métodos não deram para eles uma paz que passe através deles completamente. Um ponto importante que as pessoas esquecem é a necessidade de servir, e uma maneira importante de “deixar o ego pra lá” é servir.


Entrevista originalmente publicada em www.julianaluna.com e realizada por Juliana Luna em maio de 2007 na cidade de São Paulo. Visite o site de Robert Broughton em www.robertbroughton.com
http://existenciaconsciente.blogspot.com/

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